quarta-feira, 13 de maio de 2009

Crime revela a mentalidade de uma época

Passados 60 anos de um crime que mostrou à sociedade mineira a existência de uma rede de homossexuais na capital, pouca coisa mudou e a grande sensação de que ainda somos uma sociedade preconceituosa continua a incomodar alguns belo-horizontinos.

“Onde iremos chegar?”, esta foi a pergunta que toda sociedade belo-horizontina se fez após o vatídico cinco de dezembro de 1946, quando Luiz Gonçalves Delgado fora brutalmente assassinado no Parque Municipal. A vítima recebeu 28 facadas e foi encontrado por estudantes que encurtavam caminho até sua escola passando pelo parque. Após seis décadas, esta pergunta ainda não encontrou resposta. A sociedade continua sem saber qual será o próximo limite a ser testado e quebrado por assassinos que não ligam para a moral que cerca a existência humana. Mas de uma coisa todos podem esperar: novas formas de brutalidade e justificativas irão fazer com que todos continuem boquiabertos e com uma sensação de insegurança cada vez maior. Se antes a população de Belo Horizonte ficou chocada com este crime bárbaro, hoje, crimes como este se vê aos montes. Nem por isso avistamos uma população em polvorosa. Os crimes que tiram o sono do mundo são aqueles que fogem ao comum. Crimes bárbaros não são mais suficientes para causar comoção pública. Eles têm de ser únicos. Mesmo não sabendo o que é pior, se é não ter a mínima idéia do limite da ignorância humana ou se é o não dar a mínima importância para a existência desta brutalidade, todos clamam por uma sociedade mais humanitária.

Sem fazer muita força, é possível lembrar-se de amigos, conhecidos ou parentes que tiveram o seu direito a vida cerceada por motivos banais e que comumente se apresenta de forma brutal. Hoje em dia já não é tão incomum assim. Quando a sociedade começou a não dar importância às pessoas que são mortas? Seria necessário traçar um parâmetro sobre a Belo Horizonte de 60 anos atrás com a Belo Horizonte de nossa contemporaneidade. Lembrar de casos como o ocorrido no Parque Municipal é propiciar à população uma reflexão crítica sobre o caminho que iremos, quiçá queremos, percorrer. É uma das poucas tentativas de fazer com que a banalização da vida humana não caia no descaso total.

A vítima deste trágico assassinato era um homem distinto que pertencia à classe média da época, não havia nada que o desmerecesse. Com a sua ocupação profissional e sua posição privilegiada, Luiz não teria razão alguma para estar correndo perigo. Pelo menos, não teria. Luiz Gonçalves Delgado teve o seu assassinato atrelado a um relacionamento homoerótico. Para a sociedade da época, o tabu da sexualidade era vivenciado por todas as famílias tradicionais. Se em pleno século XXI, a homossexualidade continua sendo combustível para intolerâncias e agressões, o que dirá, então, naqueles dias em que expor sua sexualidade era uma afronta aos bons costumes.

Este crime perturbou consideravelmente o pacato cenário que a Belo Horizonte tinha em meados dos anos 40. Não apenas por se tratar de uma vida que foi perdida, mas pela combinação de 4 fatores, segundo o pesquisador Luiz Morando. A barbaridade com a qual o a vítima foi assassinada é o primeiro fator a ser levado em consideração, pois, o assassino desferiu 28 golpes em sua vítima. Em seguida, pelo local onde o corpo foi encontrado, um recanto ermo e bucólico do Parque Municipal, na região central da cidade. Em terceiro, pela suspeita, tornada forte ao longo dos anos, de envolvimento homoerótico entre vítima e criminoso. Quarto, derivado do terceiro aspecto, pelo envolvimento de diversos indivíduos que interligavam, entre si, as camadas mais polarizadas da sociedade: a elite e a boemia malandra.

Em virtude desta situação, em meio ao grande alarde e notoriedade nacional que este caso suscitou à BH, descobriu-se um segmento que até então estava escondido aos olhos da sociedade mineira. Algo que era impensado e que até hoje é motivo de espanto para muitos. Uma rede social de homossexuais presente na cidade. Há 60 anos, esta rede era mantida por personalidades exóticas com seus pseudônimos sendo levado ao mais alto nível de criatividade e que contava com muitos indivíduos. “É significativo que um crime, promovido de maneira tão violenta, revele ainda, ou pelo menos dê indícios, a mentalidade de uma época sobre questão tão crucial que é o lugar social reservado a homens homossexuais”, argumento o pesquisador.

Após esta descoberta, a brutalidade deixou de ser a cerne deste caso para dar lugar ao modo como a população tratou toda esta trama. Como um circo que chega a cidade, populares iam às sessões para saciar o seu desejo de descontração. A busca pela justiça deu lugar ao parvo entretenimento. Que contou com a ajuda do acaso ao juntar numa mesma trama a participação de indivíduos e situações dos mais variados estilos. Teve poeta acusado de assassinato, que teria assumido a autoria em seus poemas e que foi acusado pela sua esposa e confirmado por seus amigos. Crianças sendo privadas de sua ingenuidade ao presenciar a cena de um conceituado contabilista atirado ao chão. Roupas ensangüentadas que somem do necrotério, misteriosamente. Filho da empregada doméstica sendo acusado. E para terminar o grande, porém qualificado enredo, contou com a presença de dois grandes advogados: Dr. Pedro Aleixo e Dr. João Pimenta da Veiga. Tudo isso acompanhado por uma multidão de expectadores extasiados por toda aquela agitação.

Este crime deu lugar a uma nova realidade. Abriu o olho daquela sociedade para os fatos que não queria ser visto, mas que se encontrava efervescente na capital mineiro. O crime não foi o único a ser praticado contra os homossexuais naquele momento. Luiz Morando, durante sua pesquisa, descobriu que em novembro de 1954, ano em que o suposto assassino foi levado a julgamento, um cozinheiro homossexual foi assassinado a pedradas em uma madrugada, na praça Vaz de Melo, na Lagoinha. Nas décadas seguintes, outros homossexuais são assassinados, casos que podem ser acompanhados pela imprensa local. De que outra maneira a sociedade mineira poderia ter consciência de que a pacata, e até então ingênua, Belo Horizonte tinha virado uma cidade pluralista e como todas as grandes cidades, até mesmo os crimes teriam maior repercussão se este caso não tivesse acontecido? Os belo-horizontinos daquela época tiveram um previa do mundo que seus filhos iriam viver. Um mundo marcado pela banalização da vida humana. Marcado também pelo ódio ao desigual. Como bem lembrou Luiz Morando, passados 60 anos, as condições da cidade são completamente diferentes. As circunstâncias e fatores que modificaram sua aparência não foram suficientes, no entanto, para alterar certa mentalidade que vê na rede social de homossexuais um alvo fácil e frágil de chantagens e extorsões. Embora o quadro seja outro, sobretudo pela ampliação das políticas públicas para manutenção de ações que preservem os direitos humanos, civis e sociais, ainda homossexuais são vítimas de malfeitores. O prof. Luiz Mott divulga anualmente seu levantamento, feito por meio da imprensa, de assassinatos de homossexuais. Por meio desse trabalho, podemos verificar que a cada dois dias é assassinado um homossexual (seja gay, lésbica ou travesti). A mobilização precisa ser contínua para que caia. Para isso, dependemos de mudanças, que se faz no dia a dia, na mentalidade social, tornando a população mais tolerante e esclarecida.

Por dentro do Assunto

O crime do parque municipal ficou marcado por diversos fatores:

* A sociedade mineira ainda não havia presenciado tamanha barbárie.

* O crime foi ligado, através das investigações policiais, à vida sexual da vítima. Dando ao caso uma suposta motivação passional entre um relacionamento homossexual da vítima com o seu algoz.

* Este assassinato trouxe a tona a realidade homoerótica que era bastante viva em meio à sociedade.

* A brutalidade com a qual Luiz Gonçalves Delgado foi assassinado. Ele foi encontrado com 28 perfurações de faca.

* Pelas idas e vindas de suspeitos, acusações intrigantes e pelos advogados que estavam no caso.

* Quem encontrou o corpo foi algumas estudantes que estavam cortando caminho para ir ao colégio.

Observando todos estes fatores, fica claro o motivo pelo qual este crime suscitou comoção pública entre 1946-54. Atrelado a este crime estavam os vários curiosos que se aglomeravam para acompanhar o julgamento do principal suspeito, Décio Frota Escobar. Os populares, que chegou a somar uma multidão com mais de três mil expectadores, acompanhavam ininterruptamente o julgamento. Segundo algumas matérias da época, de acordo com o que era dito no tribunal, a população vibrava ou vaiava quem discursava.

Durante quase uma década, vários delegados e investigadores tentaram elucidar o caso que até hoje encontra sem solução. Todavia, este crime trouxe Belo Horizonte para o destaque das páginas de jornal de Rio de Janeiro e São Paulo. Até então, crimes deste porte só eram avistados nestas cidades, que ditavam o ritmo a ser seguido pelas demais cidades brasileiras, até mesmo em se tratando de crimes.

Belo Horizonte de 1940

O Crime do Parque ocorreu em uma cidade que, embora capital de Estado, ainda guardava traços muito peculiares de provincianismo e tradição. A Belo Horizonte de 1946 possuía em torno de 200.000 habitantes, já tendo estourado a previsão populacional para a qual havia sido planejada em fins do século XIX. A cidade recebia um fluxo de migrantes considerável, embora não tão alto quanto São Paulo. Seu clima atraía pessoas doentes com tuberculose, encaminhadas para tratamento. Na década de 1940 a cidade era despertada para seu segundo ciclo de desenvolvimentismo (o primeiro havia sido na segunda metade da década de 1920), representado pela abertura da avenida Amazonas até aonde seria implantada a Cidade Industrial, segundo o planejamento de Juscelino Kubistcheck. A vida social e cultural era considerada pacata, embora alguns crimes já tivessem tumultuado esse cotidiano calmo. A polícia, por sua vez, lidava com diversas categorias dos considerados malandros: rufiões, ventanistas, pedintes, cáftens, pequenos assaltantes.

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